- Pôxa, pai! Só mais cinco minutinhos...
- Passou da hora, meu filho. Vamos! Levanta!
A chacoalhada me fez revirar os neurônios. Suas mãos pesavam em minha cabeça num misto de carinho e flagelo.
Lá fora, o silêncio reinava em um palco azul marinho-escuro ladeado com longas cortinas prateadas de brilhantes. Era a cor da madrugada que, “enquanto todos dormiam, se revelava somente aos privilegiados,” filosofava meu pai enquanto se vestia.
- Vamos logo com isso aí. Nossa carona já vai passar, Dadinho!
- Tô indo! Tô indo!
“Cor de madrugada. Só faltava essa agora! Todo dia é uma mentira diferente pra ver se me convence a deixar de ser criança”, pensei meio irritado, meio dormindo, enquanto a gelada água molhava minhas mãos.
- Já disse que a melhor coisa é tomar um banho gelado. Isso sim te acorda. Mas, hoje não dá. Escova logo esses dentes, pois estamos atrasados. Estou preparando um copo de leite pra você. Mas, anda rápido senão não dá tempo, menino.
“Meu Deus! Parece aquele filme de guerra que assisti. Igualzinho. A única diferença é que minha batalha é na feira e eu não mato gente”, pensei logo antes de prender meu pênis no zíper da calça.
- Ai! Caramba! Que droga!
- Xi, menino! Que gritaria é essa? Vai acordar todo mundo desse jeito! – sussurrou asperadamente o general.
- Me prendi na calça! Já soltou, mas tá machucado. Ai!
- É assim mesmo, meu filho. Na vida a gente só aprende assim: é preciso dor para sentir que estamos vivos. Anda! Sai logo desse banheiro!
“Essa é nova pra mim. Então, dor é uma coisa boa? Meu pai de filósofo está passando pra doido, isso sim”, pensei ainda sentindo o latejamento, enquanto caminhava para o cômodo que chamávamos de cozinha.
- Esqueci de por açúcar no seu café com leite. Com tanta demora ele já deve estar é frio. Deixa que eu adoço pra você.
“É, pelo menos o general do filme não tinha cuidado dessa forma dos seus soldados. Ele não tinha se preocupado em preparar o café da manhã para eles. Talvez eu tivesse que parar de pensar no meu pai dessa forma”, refleti vendo a colher girar e girar dentro do copo de molho de tomate, agora entupido de café com leite.
“Café com leite?”
- Pôxa, pai! Você sabe que eu gosto de Toddy. Não quero café, ainda mais com leite!
- Mais essa agora! Na vida a gente vive com o que tem, moleque! Você devia era agradecer a Deus e não ficar reclamando! Tem leite, café e o copo. Pior seria se tivesse só o copo. Está aí! Bebe num gole só que o Samuel já vai buzinar e a gente tem que estar pronto.
“Eu gosto de chocolate, tenho que beber isso aqui e ainda tenho que agradecer?” - pensei num bocejo, agora que a dor ia-se embora e o sono teimava em voltar.
Por mais que minha mãe tentara tirar o rótulo do copo de molho de tomate, não fora suficiente, pois ainda era possível ver grande parte da propaganda. Hoje, iria eu beber café com leite sentindo um leve aroma da macarronada de domingo passado.
Para terminar com a sessão de tortura, engoli de uma vez quase todo o leite. Foi quando senti algo estranho. Muito estranho.
- Droga! Caramba! – arrotei num desespero que me fez acordar de vez.
- Que gritaria é essa, Dadinho? Mas, hoje você está impossível, hein! – novamente meu pai sussurrava gritando, uma coisa que só ele conseguia fazer.
- Pôxa, pai! Tá cheio de sal no leite. Você pôs sal em vez de açúcar! – retruquei correndo ao banheiro para vomitar o café com leite e sal refinado.
- Sal? Eu já falei pra sua mãe não deixar em cima da mesa. Dá nisso!
Neste momento a confusão era grande. Eu vomitava no banheiro, o Bodinho latia do lado de fora da casa e até o galo do vizinho que geralmente esperava os primeiros raios de sol para cantar, se assustou e cacarejou desafinado antes da hora.
- Que que tem eu? – surgiu minha mãe coçando os olhos e acendendo a luz da cozinha.
- O Dadinho tomou café com sal – balbuciou meu pai, balançando a cabeça enquanto levava para fora a armação da barraca de feira.
- Ôxe! E agora deu pra gostar disso também? – sonolenta e lenta perguntou minha mãe, tentando entender a situação.
- O pai, mãe! Eu nem queria beber, mas ele...
- Cala a boca e vamos embora, moleque! Deixa de ser frouxo! Há males que vêm pra bem. Pelo menos agora está acordado! Vem, vamos embora que esperar não é saber! – ordenava o general.
Lá fora, Samuel, atrasado, buzinava em sua perua Kombi, se perguntando por que ainda dava carona para essa gente.
Enquanto eu carregava os pedaços de ferro da armação, que mais pareciam metralhadoras em minhas mãos, ainda ouvi meu pai dizer, um pouco mais calmo:
- É, meu filho. Errar é humano. Errar é humano. Um dia você aprende. Um dia.
- “?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá! Obrigado pela visita e comentário. Logo entro em contato. Ed Rodrigues